quinta-feira, 22 de setembro de 2016

A GEOPOLÍTICA TAMBÉM PASSA POR ASSIS.





    Chefes e representantes das comunidades religiosas se reúnem novamente em Assis para pedir na oração o dom da paz. E também desta vez há alguns que procuram voltar a esgrimir as desgastadas acusações sobre o perigo de “sincretismo”, durante o evento inter-religioso que está sendo realizado na cidade de São Francisco. A mesma polêmica surgiu há trinta anos com a primeira jornada de oração pela paz convocada em Assis por São João Paulo II. Desde então, pretendia desviar a atenção coletiva e obscurecer a razão principal pela qual o Papa polonês convocou a cúpula inédita entre líderes religiosos: seu valor geopolítico.
    A reportagem é de Gianni Valente, publicada por Vatican Insider, 20-09-2016. A tradução é do Cepat.

    Nas análises compartilhadas pelos historiadores, João Paulo II, durante seus primeiros anos de Pontificado, com gestos concretos e solidariedade, contribuiu para abrir as primeiras frestas no muro comunista e para colocar em marcha o processo que, dez anos depois, levaria ao colapso de todo o sistema. Na época da “Reagan revolution”, a relação entre a Casa Branca e a Santa Sé era descrita pelos meios de comunicação como “Santa aliança” contra o “Império do mal”. E, nesse contexto, o próprio encontro inter-religioso de oração pela paz, convocado em Assis no dia 27 de outubro de 1986, representa também uma operação geopolítica de alto nível. O objetivo, não proclamado, era o de arrebatar do mundo comunista o léxico pacifista monopolizado durante décadas pela propaganda soviética, reivindicando para a “internacional das religiões” o compromisso pela paz. 

    “Não rezamos em vão em Assis”, disse João Paulo II, após 1989, referindo-se aos eventos daquele ano nos quais, segundo sua opinião, “Deus vicit”, venceu Deus. Palavras que aparecem citadas na biografia de Wojtyla escrita pelo historiador Andrea Riccardi, fundador da Comunità di Sant’Egidio, que teria se encarregado de manter vivo em seus encontros inter-religiosos anuais o “espírito de Assis”. Segundo Riccardi, o evento “de Assis, em 1986, revela o primado moral assumido pelo Pontificado romano com Wojtyla”. Com aquele gesto, João Paulo II reivindicava “o caráter religioso do compromisso pela paz”, porque acreditava na eficácia da oração e no “vínculo intrínseco que une uma autêntica atitude religiosa e o grande bem da paz”.

    As intenções geopolíticas do encontro inter-religioso de Assis também foram confirmadas pelo cardeal Stanislaw Dziwisz, que foi secretário pessoal do Papa polonês, em uma entrevista ao jornal italiano La Stampa, de 4 de setembro de 2006: “Havia muita ideologia no pacifismo tal e como cresceu nos países do leste”, disse nessa ocasião o cardeal polonês, e acrescentou que justamente a primeira jornada de oração de Assis “retirou a ideologia da paz e colocou a paz no centro das prioridades do mundo”.

    Durante as décadas seguintes, a simpatia com os sujeitos religiosos e as comunidades de fé (redescoberta pela Igreja católica sem cair em sincretismos e, pelo menos em parte, alimentada pelo discernimento que surgiu com o último Concílio) declinou de diferentes maneiras, nas circunstâncias e nas mudanças dos cenários globais. Na Conferência da ONU sobre a população e o desenvolvimento (de setembro de 1994), no Cairo, e na sobre a mulher, em Pequim (setembro de 1995), a Santa Sé formou uma frente comum com muitos países islâmicos a respeito de questões de bioética e moral, e entrou em colisão com a linha de Clinton. Frente à Guerra do Golfo de George Bush pai (1990-1991) e as novas intervenções estadunidenses no Oriente Médio, desencadeadas após os atentados de 11 de setembro de 2001, a Igreja católica conduzida por João Paulo II e depois por Bento XVI se distanciou das pressões dos círculos do Ocidente que queriam envolvê-la em uma chave anti-islâmica. 

    Trinta anos após Assis 1986, o Encontro Inter-religioso de Assis 2016 tem como motor a preocupação compartilhada por um mundo que vive convulsões de guerra e obscuras enfermidades, onde há décadas não existem conflitos ou atos de terror (de Sarajevo a Bagdá, passando pela Nigéria, Filipinas, Afeganistão e Indonésia) que não abeberam nos sectarismos étnicos e religiosos. Os líderes religiosos de hoje já não devem enfrentar em comum o comunismo ateu ou o secularismo relativista. Tampouco se trata de reivindicar uma presumida e desmentida “pureza” da esfera da religião frente às misérias da política e dos interesses econômicos ou de poder mundanos. 

    A frente da “guerra em pedaços”, citada constantemente pelo Papa Francisco, não contrapõe as diferentes religiões. A linha da frente passa transversalmente por todas as sociedades e comunidades de fé. Em cada família religiosa distingue entre o povo dos crentes que confiam o desejo de paz a Deus e as tropas seletas dos “facilitadores do Apocalipse”. Demonstra que a guerra é entre o mundo e os que querem “acelerar” o fim do mundo, sem descuidar dos lucros que aumentam com o tráfico de armas. 

    O Papa Francisco repete que uma via de escape para sair da espiral do auto aniquilamento promovida pelas agências do terror só pode ser buscada junto e não “contra” os demais. E também segue contra a corrente em relação às estratégias que pretendem intimidar, humilhar e isolar indiscriminadamente a multidão orante do islã. O “Papa Francisco”, conforme disse em Assis, domingo passado, Mohammed Sammak, conselheiro político do Grão-Mufti do Líbano, “se propôs como líder espiritual para toda a humanidade, quando disse que não há nenhuma religião criminosa, mas há criminosos em todas as religiões”.
    Fonte : Instituto Humanitas Unisinos

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